Dinamarca,
um país contra o desperdício de comida
Graças a ativistas, supermercados e fabricantes,
nação europeia elimina 25% do desperdício
Dinamarqueses fazem compras em um
supermercado. Flemming Effersøe REMA 1000
Copenhague
15 OUT 2016 -
17:01 BRT
Com as
folhas verdes da cenoura se pode fazer um pesto. As dos rabanetes, quando bem
lavadas e marinadas, servem para saladas. Levadas ao forno, as que rodeiam a
couve-flor ficam saborosas e crocantes. Essas receitas não são novas, mas seus
ingredientes costumam acabar no lixo, pelo fato de não parecerem comestíveis.
Fazem parte dos 30% de toda a comida produzida no mundo – e de 25% da
água usada em seu cultivo – que desperdiçamos sem pensar duas vezes.
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Nada menos que um terço dos
alimentos. E isso que, segundo a ONU, até 2050 será necessário aumentar em 60%
a oferta para alimentar os quase 10 bilhões de seres humanos que habitarão a Terra
nessa época. Embora o desperdício alimentar seja socialmente mal
visto, o que geralmente é uma das primeiras lições aprendidas em casa, os maus
hábitos superam as boas intenções. Na Dinamarca,
o esforço dos últimos cinco anos deu frutos: o país reduziu as perdas de
alimentos em 25% graças ao impulso popular do movimento encabeçado pela
plataforma Stop Spild Af Mad (“basta de desperdiçar comida”,
no idioma local). Esse grupo é o motor, mas já embarcaram na ideia gigantes
como Nestlé e Unilever, chefs famosos e redes de supermercados como a Rema
1000. De tanto ser martelada, em meia década essa mensagem impregnou a
sociedade.
Numa loja da Rema 1000 em
Copenhague, há um saco de cenouras e outro de cherovias (uma raiz semelhante à
cenoura) ao lado da balança onde frutas e hortaliças são pesadas. Esses dois
produtos, muito populares, são vendidos por unidade, e não em maços ou sacos. É
simples e ajuda o consumidor a comprar só o que necessita. Um pouco mais
adiante, junto às geladeiras de laticínios, são guardados os ovos. Ficam
refrigerados a 12oC para prolongar seu uso sem problemas de
toxicidade. Os sacos de pão de forma apresentam meias porções, e as de bolinhos
vêm com apenas cinco. Nos freezers das carnes, bifes e peitos de frango com
prazo de validade muito exíguo têm um adesivo chamativo e preço reduzido. Em
nenhum lugar há ofertas do tipo “leve três e pague dois”.
“Se você
for analisar, faz sentido. Para que comprar mais do que o necessário? E, no
entanto, todos nós fazemos isso”
“Se você for analisar, faz
sentido. Para que comprar mais do que o necessário? E, no entanto, todos nós
fazemos isso”, diz Anne-Marie Jensen Kerstens, consultora alimentar da
Federação de Comerciantes Varejistas (DSK, na sigla em dinamarquês). Em 2008,
essa foi a primeira rede de supermercados da Dinamarca a eliminar os descontos
por volume, como o 3x2, preferindo oferecer produtos unitários a preços baixos.
“Não só não atrapalhou as vendas como o cliente tende a levar a quantidade
exata”, comenta Jense Kerstens.
O caminho dinamarquês contra o
desperdício de alimentos – todos os caminhos, na verdade – levam a Selina Juul,
uma designer gráfica transformada em ativista que abalou as consciências.
Nascida em Moscou em 1980, chegou à Dinamarca com 13 anos e logo percebeu um
fato para ela inconcebível. “As pessoas jogavam fora os restos de comida, quando
em Moscou não sabíamos o que íamos comer no dia seguinte”, lembra a criadora de
Stop Spild Af Mad em um restaurante do centro perto do Ministério de
Alimentação, Agricultura e Pesca. É uma de suas piscadelas típicas. Isso e sua
determinação a transformaram na Dinamarquesa do Ano em 2014. De cidadã irritada
com o desperdício de alimentos (um total de 700.000 toneladas por ano, das
quais 260.000 correspondem ao consumidor), Juul transformou Stop Spild Af Mad
na maior ONG de seu tipo no país.
“É preciso trabalhar a partir do
lar. Se você visualiza o que joga fora é mais fácil consumir de forma sensata.
Por exemplo, um em cada dois dinamarqueses tinha em sua geladeira em 2015 algum
Objeto Congelado Não Identificado que acaba no lixo”. A ativista pede que se
imagine, por outro lado, a comida desperdiçada no Natal quando se cozinha para
20 e no máximo há 10 pessoas na mesa. “Tentamos fazer com que as pessoas
percebam isso. Tal como acontece com os bufês ilimitados, que estão
desaparecendo”.
Cenouras
e cherovias ‘feias’ em um supermercado dinamarquês. Flemming Effersøe REMA 100
Nos restaurantes tradicionais,
uma outra iniciativa teve eco. Como o apoio do departamento de Soluções
Alimentares da multinacional Unilever, desde 2013 foram distribuídas cerca de
80.000 sacos de restos em cerca de 300 locais. Muito populares nos EUA, eles
são chamados ali de Doggy Bag [saco para o cão, embora seja, na verdade, para o
cliente]. A ONG dinamarquesa mudou seu nome para Goodie Bag [saco das coisas
boas] e estimula os garçons a oferecê-las aos frequentadores para evitar
constrangimentos.
Em fevereiro passado, foi aberto
o Wefood, uma mercearia que vende frutas e verduras com embalagem danificada ou
de aspecto “feio”, mas comestíveis. E pelo Too Good to Go se pode pedir comida
que tenha sobrado, ainda saudável, para cafés, restaurantes, padarias...
“A Unilever usa 10% dos tomates
do mundo inteiro, e até 2020 queremos reduzir a nossa pegada de contaminação
pela metade. Que qualquer recurso natural utilizado, da verdura ao chá,
provenha de uma fonte sustentável, sejam de estação ou não, e que não sejamos
obrigados a transportá-lo por mais de 130 quilômetros para uma fábrica”, afirma
Frank Jakobsen, chefe e especialista em tecnologia de alimentos da empresa em
Copenhague. A companhia desenvolveu um aplicativo voltado para os cozinheiros
que “os ajuda a reduzir o desperdício medindo o consumo de seus clientes e
indicando onde se acumula mais lixo”.
Outro gigante do setor, a Nestlé,
também se comprometeu publicamente a eliminar o desperdício de alimentos. “Por
uma questão de responsabilidade e também porque se perde dinheiro. Nosso
objetivo é reduzi-la a zero em nossas fábricas e centros de distribuição até
2020. É preciso diminuir pela metade também toda a comida que não é
aproveitada, desde a granja até a mesa, até 2030”, afirma Michiel Kernkamp,
diretor de mercado da Nestlé Nordic.
Empurrado por Selina Juul e pelo
trabalho dos ativistas do Stop Spild af Mad, o Governo dinamarquês também se
faz presente. “É um dos nossos maiores parceiros, pois empresas e políticos já
viram que desperdiçar comida não é algo popular. E que transformar esse lixo
todo em combustível, algo muito útil, também não é a solução. O essencial é que
o consumidor seja responsável e exija o mesmo da indústria”, conclui a ativista.
Isabel Ferrer, Copenhague
A primeira coisa que chama a
atenção na escola de cozinha de Timm Vladimir, duas vezes vencedor do concurso
Masterchef da Dinamarca, é a farinha. A medida justa está preparada nos pratos
para seus clientes. “É melhor colocar para não desperdiçar grandes
quantidades”, diz, em um ambiente organizado e muito limpo. O da farinha não é
apenas para economizar. Vladimir é embaixador de Stop Spild Af Mad, a ONG
empenhada em reduzir a quantidade de comida desperdiçada no país, e aborda seu
trabalho educativo com a segurança do ator, sua primeira vocação. “Nos
esquecemos de conservar bem os alimentos, fazer conservas caseiras, salgar ou
defumar. Por preguiça, jogamos produtos em perfeito estado, por isso trabalho
também com crianças. É preciso começar imediatamente”.